“ … mas o seu coração está longe de Mim”
Os fariseus e os escribas, que vigiam constantemente Jesus, voltam a entrar em polémica com Ele. O pretexto é o facto de alguns discípulos de Jesus comerem sem lavarem previamente as mãos, o que constitui uma clara transgressão da tradição dos antigos. Não compreendem e irrita-os que Jesus pactue com tal comportamento. A atitude de Jesus, que não exige o cumprimento da lei, faz d’Ele também um transgressor da mesma. Por isso questionam: que mestre é este, que autoridade tem, que aprovação pode receber de Deus e aceitação por parte dos homens, se não respeita nem faz respeitar os costumes do povo?
Jesus reage e responde-lhes com a frontalidade. Antes de mais e inspirando-se num texto do profeta Isaías (Is 29,13), Jesus denuncia a sua hipocrisia: não são o que parecem ser ou querem fazer crer, cultivam as aparências, gostam de impressionar e ser admirados, procuram o reconhecimento e a recompensa dos homens, mas o seu coração está vazio de amor e não pertence a Deus. Por outras palavras: os escribas e os fariseus fazem longas orações, comparecem todos os sábados na sinagoga, dão avultadas esmolas, jejuam e pagam o dízimo de todos os seus bens, vão ao templo, participam nas festas e oferecem muitos sacrifícios. Porém, não vivem interiormente em sintonia com Deus. Deus não está presente nas suas vidas nem o louvam com o seu coração.
Depois, em vez de transmitirem a palavra e proporem os mandamentos de Deus, ensinam e impõem ao povo as suas doutrinas e preceitos humanos. Põem mais empenho em que as pessoas conheçam e respeitem as leis e as tradições do que conheçam e cumpram a lei de Deus. Chegam mesmo ao absurdo, como Jesus faz questão de lhes lembrar, de esquecerem, desprezarem e anularem o mandamento de Deus, muito concretamente o do amor ao próximo, fazendo prevalecer a tradição dos homens, porque esta defendia os seus interesses e privilégios.
As normas de higiene, e especificamente a que diz respeito ao lavar as mãos antes das refeições, têm a sua razão de ser e, em princípio, devem ser sempre observadas. O homem só tem a ganhar com isso. No entanto, o facto de os discípulos não terem lavado as mãos naquele dia, não justifica que os fariseus e os escribas pensem mal deles e impliquem com Jesus. Aquela norma, apesar de razoável, não se deve sobrepor a um bem maior, a saber, a paz e as boas relações que devem existir entre as pessoas.
Os fariseus e os escribas também desvirtuaram por completo a lei do descanso sabático com as suas interpretações e prescrições. Chegam ao ponto de condenar Jesus por fazer milagres nesse dia. Por sua vez, Jesus faz-lhes ver que o homem vale mais do que o sábado e que, na perspectiva de Deus, o sábado está ao serviço do homem e não o contrário. Fazer o bem a quem precisa vale mais do que o mero cumprimento exterior da lei.
“ … mas o seu coração está longe de Mim”. Se o coração do homem está longe de Deus, tudo o que o homem faz, mesmo as suas práticas religiosas, não tem qualquer valor aos seus olhos. O culto sem amor não louva nem agrada a Deus, não dignifica nem santifica o homem.
Deus só se compraz no homem, quando este escuta a sua palavra e se mostra receptivo ao seu amor. A Deus agrada-lhe o homem que aceita dialogar com Ele, que medita e interioriza a sua palavra, que faz dela o programa da sua vida e a cumpre. Este cumprimento da palavra/vontade de Deus concretiza-se “em visitar os órfãos e as viúvas nas suas tribulações”, ou seja, na prática das obras de misericórdia, no amor ao próximo necessitado. Esta é “a religião pura”.
“ … mas o seu coração está longe de Mim”. A nossa religião é a da palavra ou a do palavreado? É a religião dos lábios ou a do coração? Sentimos Deus junto de nós e em nós? Damos-Lhe tempo para estar connosco? Deixamos que Ele fale, tomamos a sério a sua palavra, recebemo-la como alimento espiritual, aceitamo-la como norma do nosso agir moral? Ou ficamos apenas pela religião das palavras e dos lábios? Uma religião sem coração, sem amor, sem sentimentos, apenas uma religião exterior, uma religião de formulas e de ritos, sem uma relação pessoal com Deus e sem qualquer compromisso com o próximo?
Pe. José Manuel Martins de Almeida