O sonho escutista

Homilia na celebração dos 90 anos do CNE em Portugal

A nossa vida é como um jogo onde se defrontam dois adversários: de um lado, está o mundo com a sua lógica de egoísmo, domínio e morte; do outro lado, está Deus com a sua oferta de fraternidade, comunhão e vida plena. Inicialmente, podemos pensar que o resultado final deste jogo é incerto, como determina todo e qualquer o prognóstico desportivo. Mas desde o acontecimento da Ressurreição de Jesus, que já sabemos quem é o grande vencedor deste duelo: só pode ser o amor de Deus!

Posto isto, hoje celebramos o Domingo da Santíssima Trindade: o dia em que celebramos a identidade do nosso Deus Uni-Trino. Aliás, Jesus no evangelho de hoje pede-nos, porém, que, em vez de tentarmos compreender racionalmente o mistério de Deus, como fizeram tantos teólogos ao longo da história, nos deixemos envolver por uma experiência pessoal com Ele.

E porquê? Porque dentro da família de Deus, a Trindade do Pai, do Filho e do Espírito Santo, só há uma regra: a comunhão. E o que caracteriza o nosso Deus, não é o seu poder ou a sua força, mas o seu amor infinito. Por isso, não há nada mais reconfortante do que ter um Deus, que é como um autêntico Pai, que nos compreende, nos ama, nos valoriza e nos perdoa como mais ninguém! E nisto reside a principal diferença entre o escutismo católico e as outras formas de escutismo.

Neste sentido, ao celebrarmos os 90 anos da fundação do escutismo em Portugal, permiti que, nesta Catedral onde se encontra sepultado o vosso fundador, D. Manuel Vieira de Matos, vos deixe oito pistas de reflexão, como forma de re-centralizar o específico do CNE, tornando-o construtor duma sociedade mais humana, na lógica da fidelidade à Igreja.

1 – Deste modo, em primeiro lugar, em tempos dum multiculturalismo e, particularmente duma tendência, que facilmente se acolhe, de aceitar os sabores dos momentos, o CNE não pode ceder à ideologia do relativismo que se impõe na sociedade hodierna, e, consequentemente, pretende alargar as suas lógicas a todos os âmbitos da vida humana. Importa, por isso, que o CNE se mantenha fiel ao projeto inicial, consciente de que esta fidelidade é o melhor serviço que presta à Igreja e à sociedade.

2 – Em segundo, como escola de formação da juventude, não pode cair na tentação da escolarização, ensinando uma doutrina, talvez com muita competência e técnica, mas longe duma vida que se deixa, dum modo desinibido, marcar pelo espírito dumas promessas que sublinham valores concretos, atuais e perfeitamente humanos, pois em profunda intimidade com Aquele que soube ser Homem, sem trair a integridade material e espiritual.

3 – Em terceiro, longe duma técnica de transmissão de conhecimentos, só a simplicidade dum método, capaz de se situar na história humana e aí saber discernir, com muita naturalidade, o que convém e é verdadeiramente humano, permitirá uma vitalidade e correspondência aos anseios dos jovens. Se esta simplicidade for confirmada pela pedagogia do testemunho dos dirigentes, que não aceitam ambiguidades mas se orgulham dum ideal escutista, os jovens nunca ficarão indiferentes e seguindo o que, talvez inconscientemente, vão presenciando, transformam os agrupamentos ou núcleos em autênticas células de renovação da comunidade eclesial ou civil. O mundo moderno necessita de testemunhas que, pela vida, gritam caminhos dum mundo novo!

4 – Em quarto lugar, no CNE a dinâmica deve assumir a alegria de ser Igreja, conscientes da existência doutras expressões. Como tal, agem e se disponibilizam para evitar certos tipos de confusão que deturpam, queiramos ou não, uma identidade que, particularmente os dirigentes, nunca podem ignorar. Por vezes parece constatar-se uma certa tendência de pretender esquecer esta matriz de plena comunhão, a nível local ou Arquidiocesano, quase que autonomizando-se em relação às paróquias e Diocese, que foge à corresponsabilidade que se enriquece com a diversidade. Pretender uma autonomia sem uma integração significa perder a matriz e servir-se da Igreja (paroquia) em vez de a servir.

5 – Em quinto, a plena integração na Igreja pretende-se que seja numa lógica do Concílio Vaticano II, onde se sublinha a diferença corajosa que não separa do resto da sociedade, mas que suscita uma grande espírito de respeito e diálogo por quem pensa diferente. Daí a tolerância educada e a convivência inter-religiosa promovida desde que não desvirtue. Não poderemos aceitar fundamentalismos com comportamentos de simples rejeição ou condenação. Com todos convivemos, em mútuo respeito, e marchamos de mãos dadas para a construção duma fraternidade universal.

6 – Em sexto, a fidelidade ao Movimento, assumida em Igreja, recorda a opção de vida pelos outros, em termos de alerta perante as necessidades e sentido de serviço perante todos os problemas e necessidades da Igreja ou da sociedade. Se primamos por uma atenção e respeito pela natureza, nunca desconsideramos uma ecologia humana onde cada ser humano vale pelo facto de o ser, e daí que o serviço deve ser preferencialmente pelos mais carenciados ou desfavorecidos. O contexto atual exige a alegria de descortinar a igualdade e de lutar pela dignidade, não só com comportamentos de campanhas ocasionais, mas com atitudes que podem tornar-se contagiosas, para que o mundo fique melhor do que o encontramos. Pode parecer pouco, mas importa multiplicar o pouco de muitos e algo de novo vai nascendo.

7 – Além disso, a sétima pista assenta na a mística escutista que posibilita uma redescoberta de Deus, que está presente e acompanha a sua Igreja. O imaginário com os símbolos, e particularmente os Patronos, não são simples passatempos numa linguagem que diferencia doutros movimentos. Há um envolvimento da personalidade, um compromisso duma inteligência que progride no conhecimento das verdades, e uma relação de referência para reconhecer que, como os outros, somos capazes.

8 – Em último, creio que tudo se orienta para aceitar a fé como orgulho ou elemento basilar da ação escutista. ”O homem de pouco vale se não acreditar em Deus e obedecer às suas leis. Por isso todo o escuteiro deve ter uma religião” [1]Não sou eu que o digo, mas o vosso próprio fundador, Banden Powell. Por isso, a formação dos Dirigentes e a animação espiritual dos assistentes devem fazer viver coerentemente e verdadeiramente a fé, sempre em comunhão com a hierarquia da Igreja. Trata-se, pura e simplesmente, de integrar harmoniosamente a Fé com o Escutismo, para que todo o escuteiro se orgulhe da sua fé, como determina o primeiro princípio do CNE.

Para terminar, o poeta Fernando Pessoa escreveu a certo dia: “Deus quer, o homem sonha, a obra nasce” Por isso, se o mistério do Deus Trindade se resume à palavra “comunhão”, então o nosso maior sonho escutista só pode ser a comunhão fraterna, a formação integral e a solidariedade social entre todos os jovens (LG 4), na certeza de que o nosso Deus, se encarregará de fazer com que esta obra pastoral cresça, mediante a acção do seu Santo Espírito.

E estas oito referências podem constituir, sem desconsiderar outros pormenores, o modo mais adequado de celebrar os 90 anos e de homenagear D. Manuel Vieira de Mato, o fundador do escutismo católico em Portugal. E porquê? Porque no jogo da vida, quem opta pelo clube do amor de Deus, ganha sempre!

† Jorge Ortiga, A.P.

Sé Catedral de Braga, 26 de Maio de 2013.

 

 


 

[1] Baden Powell, Escutismo para Rapazes, p. 256.